Muito cedo na minha vida foi tarde de mais. Aos dezoito anos era já tarde de mais. Entre os dezoito e os vinte e cinco anos o meu rosto partiu numa direção imprevista. Aos dezoito anos envelheci. Não sei se é assim com toda a gente, nunca perguntei. Parece-me ter ouvido falar dessa aceleração do tempo que nos fere por vezes quando atravessamos as idades mais jovens, mais celebradas da vida. Este envelhecimento foi brutal. Vi-o apoderar-se dos meus traços um a um, alterar a relação que havia entre eles, tornar os olhos maiores, o olhar mais triste, a boca mais definitiva, marcar a fronte de fendas profundas. Em vez de me assustar, vi operar-se este envelhecimento do meu rosto com o interesse que teria, por exemplo, pelo desenrolar de uma leitura.
Podem ler o primeiro capítulo de O Amante, de Marguerite Duras, aqui.
Com o seu vestido persa muito justo e um turbante a condizer, estava encantadora. A Primavera tinha chegado e ela calçara luvas compridas e drapeara displicentemente à volta do pescoço belo e robusto uma linda estola em pele, de um tom cinzento-acastanhado. Decidíramos procurar apartamento
No dia em que resolvemos procurar o nosso ninho de amor estávamos radiantes. Sempre que chegávamos a um pórtico e tocávamos à campainha abraçava-a e beijava-a vezes sem conta. O vestido assentava-lhe como uma luva. Nunca a tinha visto tão atraente. Às vezes a porta abria-se antes de nos conseguirmos separar. Havia alturas em que nos pediam para mostrar a aliança ou a certidão de casamento.
Perto do final do dia demos com uma mulher do Sul, liberal e calorosa, que pareceu gostar logo de nós. A casa que tinha para alugar era impressionante, mas muito acima das nossas posses. É claro que Mona estava decidida a ficar com ela; era mesmo o tipo de casa onde sempre sonhara viver. O facto de a renda ser o dobro do que fazíamos tenções de pagar não a incomodava nada. Eu que deixasse tudo por conta dela – daria conta do recado. A verdade é que eu queria o apartamento tanto quanto ela, mas não tinha ilusões quanto a dar conta do recado. Estava convencido que se ficássemos com ele afundar-nos-íamos.
É claro que a mulher com quem conversávamos não suspeitava que constituíamos risco. Estávamos confortavelmente sentados no apartamento dela, no andar de cima, a beber xerez. O marido não tardou a chegar. Também ele nos achou um casal muito simpático. Era da Virgínia, um verdadeiro cavalheiro. A minha posição no mundo cosmodemónico impressionou-os claramente. Mostraram-se muito espantados por ver alguém tão novo como eu numa posição de tanta responsabilidade. Mona, é claro, aproveitou-se completamente da situação. A acreditar no que ela dizia, eu já estava na calha para o lugar de superintendente, e dentro de poucos anos alcançaria a vice-presidência.
Continue a ler o primeiro capítulo de Plexus, de Henry Miller, aqui.
O dia raiou cinzento e tristonho. As nuvens adensavam-se, carregadas, e pairava no ar um frio agreste, prenúncio de neve. Uma criada entrou num quarto onde dormia uma criança e correu as cortinas. Olhou mecanicamente para a casa em frente, de estuque branco com um pórtico, e abeirou-se da cama.
– Vamos, Philip, acorde – disse ela.
Puxando os cobertores para trás, pegou-lhe ao colo e desceu as escadas com o menino ainda semiadormecido.
– A sua mãe quer vê-lo.
Abriu a porta de um quarto no andar de baixo e levou-o até uma cama onde estava deitada uma mulher. A mãe dele. A mulher estendeu os braços e o menino aconchegou-se ao seu lado sem perguntar porque tinham ido acordá-lo. A mulher beijou-lhe os olhos; com mãos magras e delicadas, sentiu-lhe o calor do corpo através da camisa de dormir de flanela branca e apertou-o mais contra si.
– Estás com soninho, meu querido? – perguntou ela.
A voz era tão débil que parecia vir de muito longe. O menino não respondeu, mas sorriu feliz. Era tão bom estar na cama grande e quente, com aqueles braços macios a aconchegá-lo. Tentando fazer-se ainda mais pequenino, aninhado ao lado da mãe, deu-lhe um beijo ensonado e, num instante, fechou os olhos e adormeceu profundamente. O médico aproximou-se e parou junto da cama.
– Oh, não o leve ainda – pediu a mulher num gemido.
Sem responder, o médico fitou-a muito sério. Sabendo que não iam deixá-la ficar com o menino por muito mais tempo, a mulher beijou-o novamente e, com a mão, acariciou-lhe o corpinho até aos pés; em seguida agarrou-lhe o pé direito, acariciou os cinco dedinhos e, lentamente, fez-lhe uma festa no pé esquerdo. Depois soltou um suspiro.
– O que foi? – disse o médico. – Sente-se cansada?
Ela abanou a cabeça, sem conseguir falar, e as lágrimas rolaram-lhe pelas faces. O médico inclinou-se sobre ela.
– Deixe-me levá-lo.
Demasiado fraca para resistir, ela deu-lhe o menino e o médico entregou-o por sua vez à ama.
– É melhor ir deitá-lo outra vez na cama dele.
– Sim, senhor doutor.
A criança foi levada, ainda adormecida, deixando a mãe a soluçar, inconsolável.
– O que vai ser dele, pobrezinho?
A enfermeira tentou acalmá-la e, por fim, o choro cedeu à exaustão. O médico aproximou-se de uma mesa, do outro lado do quarto, onde, debaixo de uma toalha, jazia o corpo de um nado-morto. Levantou a toalha e olhou para ele. Estava escondido da cama por um biombo, mas a mulher percebeu o que ele estava a fazer.
– Era menina ou menino? – perguntou ela baixinho à enfermeira.
– Outro menino.
A mulher não respondeu. Pouco depois a ama voltou a entrar no quarto e aproximou-se da cama.
– O menino Philip não acordou – disse ela.
Houve uma pausa e depois o médico tomou novamente o pulso à paciente.
– Penso que por agora não há mais nada que eu possa fazer – disse ele. – Volto depois do pequeno-almoço.
– Eu acompanho-o à porta, senhor doutor – disse a ama.
Desceram as escadas
– Mandou chamar o cunhado de Mrs. Carey, não é verdade?
– Sim, senhor doutor.
– Sabe a que horas chega?
– Não, senhor, estou à espera de um telegrama.
– E o pequeno? Acho melhor que não esteja por aqui.
– Miss Watkin disse que o levava.
– Quem?
– A madrinha dele. O senhor doutor acha que Mrs. Carey vai recuperar?
O médico abanou a cabeça.
Podem fazer o download dos primeiros capítulos de Servidão Humana, de Somerset Maugham, aqui.
Sendo este romance já bastante longo, sinto até vergonha de o tornar ainda mais longo acrescentando-lhe um prefácio. O autor é provavelmente a última pessoa capaz de discorrer com objectividade sobre o seu próprio trabalho. O distinto romancista francês Roger Martin du Gard conta, a propósito desta questão, uma história exemplar sobre Marcel Proust. Proust queria que determinado jornal francês publicasse um artigo sobre o seu grande romance e, pensando que ninguém seria capaz de o fazer melhor do que ele, sentou-se à secretária e escreveu-o ele mesmo. Depois pediu a um jovem amigo, também escritor, que o assinasse e entregasse ao director do jornal. O jovem assim fez, mas passados alguns dias o director mandou-o chamar. “Tenho de recusar o seu artigo” disse ele. “Marcel Proust jamais me perdoaria se eu publicasse uma crítica tão superficial e contundente sobre a sua obra.” Embora os autores sejam susceptíveis em relação ao seu trabalho e revelem tendência para reagir mal às críticas desfavoráveis, raramente o que produzem os satisfaz, pois têm consciência da incomensurável distância que separa a ideia original da obra a que dedicaram tanto tempo e esforço e, ao pensarem nisto, ficam muito mais contrariados com a sua incapacidade de expressarem essa ideia na íntegra do que satisfeitos com algumas passagens para que podem olhar com complacência. O seu objectivo é a perfeição e estão dolorosamente conscientes de não a terem atingido.
Cinco dias antes do drama, Fima teve um sonho que registou às cinco e meia da manhã no seu bloco de sonhos. Este, de cor castanha, jazia debaixo de uma pilha desordenada de jornais e revistas velhos que se encontrava no chão, aos pés da cama. Fima tinha o costume de escrever na cama, aos primeiros alvores da madrugada, quando a luz pálida surgia quebrada pelas ripas dos estores. Se não tinha sonhado nada ou se se tinha esquecido, mesmo assim acendia o candeeiro, piscava os olhos, sentava-se na cama e, colocando sobre os joelhos uma revista grossa que improvisava um tampo de mesa, escrevia, por exemplo, isto:
“Vinte de Dezembro — nada.”
ou:
“Quatro de Janeiro — algo com uma raposa e uma escada, mas com pormenores apagados.”
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Em Fevereiro, 1948, o dirigente comunista Klement Gottwald subiu à varanda de um palácio barroco de Praga para falar às centenas de milhares de cidadãos aglomerados na praça da Cidade Velha. Foi uma grande viragem na história da Boémia. Um momento fatídico, como acontece uma ou duas vezes por milénio.
Gottwald fazia-se acompanhar pelos camaradas, e ao lado, muito perto, estava Clementis. Nevava, estava muito frio, e Gottwald vinha de cabeça descoberta. Clementis, muito solícito, tirou o gorro de pele que trazia e colocou-o na cabeça de Gottwald.
A secção de propaganda fez centenas de milhares de exemplares da fotografia da varanda de onde Gottwald, de gorro de pele e rodeado pelos camaradas, fala ao povo. Nesta varanda começou a História da Boémia comunista. Todas as crianças conheciam a fotografia, porque a tinham visto nos cartazes, nos manuais ou nos museus.
Quatro anos mais tarde, Clementis foi acusado de traição e enforcado. A secção de propaganda fê-lo desaparecer imediatamente da História e, como é evidente, de todas as fotografias. A partir daí, Gottwald está sozinho na varanda. Onde ficava Clementis há apenas a parede vazia do palácio. De Clementis restou o gorro de pele na cabeça de Gottwald.
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Deve ter sido numa quinta-feira à noite que a vi pela primeira vez no salão de dança. Apresentei-me ao trabalho de manhã, como um sonâmbulo, depois de ter dormido uma hora ou duas. O dia passou como um sonho. Depois de jantar, adormeci no sofá e acordei pelas seis da manhã, completamente vestido. Sentia-me completamente fresco, com o coração limpo e obcecado com uma ideia: tê-la a qualquer preço. Ao caminhar pelo parque, pensei em que tipo de flores devia mandar com o livro que lhe tinha prometido (Winesburg, Ohio). Estava a chegar ao meu trigésimo terceiro ano, a idade de Cristo crucificado. Tinha uma vida nova pela frente, tivesse eu a coragem de arriscar tudo. Na verdade não havia nada a arriscar: estava no fundo do poço, um falhanço em todos os sentidos.
Era sábado de manhã, e para mim o sábado sempre foi o melhor dia da semana. Animo-me quando os outros estão a cair de cansaço; a minha semana começa com o dia de descanso judaico. Aquela ia ser a melhor semana da minha vida e viria a durar sete longos anos, mas é claro que não fazia ideia. Sabia apenas que o dia era auspicioso e prometia agitação. Dar o passo fatal, atirar tudo para trás, já é em si uma emancipação; nunca me passou pela cabeça quais seriam as consequências. Rendermo-nos absoluta e incondicionalmente à mulher que amamos é quebrar todas as amarras, excepto o desejo de não a perder, que é a mais terrível amarra de todas.
o livro do riso e do esquecimento