Uma nova biografia e uma série de reedições alimentam o revivalismo em torno do homem que em tempos foi “o melhor escritor de segunda categoria”. A ASA lança Servidão Humana. Volta, William Somerset Maugham, estás perdoado.
“Não acalento ilusões no que diz respeito à minha posição no universo literário e não albergo ressentimentos em relação a certos críticos brilhantes que escrevem sobre literatura contemporânea e nunca se lembram de mim”, declarou William Somerset Maugham nos anos 20. Por essa altura, já era famoso e parecia ter esquecido que, desde o início da sua carreira, nos primórdios do século XX, lograra o aplauso de sumidades como Virginia Woolf, Elizabeth Bowen, Theodore Dreiser – que muito contribuiu para o sucesso de Servidão Humana –, Rebecca West e Evelyn Waugh, entre outros. O que parecia incomodar o escritor era o facto de a crítica se tornar cada vez mais evasiva à medida que enriquecia, que as suas peças enchiam os teatros e que os seus livros esgotavam edições. Frases como “o melhor escritor de segunda categoria” ou “um contador de histórias eficaz” estigmatizavam a obra de um autor que, para muitos, tratava temas profundos – a angústia existencial, a busca da liberdade, a atracção erótica e o apelo do exotismo – com leviandade e rigidez.
Num artigo publicado no Atlantic em 2004, Poor Old Willie, Christopher Hitchens enunciou sem piedade os clichés na obra de Maugham e relembrou a opinião de Edmund Wilson, que considerava o famoso O Fio da Navalha um amontoado de banalidades. Apesar de tudo, neste final de década do século XXI a obra de Maugham conhece um revivalismo marcante – em Portugal está a ser reeditada pela ASA, que acaba de lançar Servidão Humana e fará chegar às livrarias em 2010 O Fio da Navalha, principalmente depois da adaptação para o cinema de O Véu Pintado (2006) e da publicação de The Secret Lives of Somerset Maugham, a biografia de Selina Hastings, já considerada pelo The Times como a melhor deste ano. Foi também importante a referência directa de V. S. Naipaul em Half a Life (2001), onde começa por contar a história do feliz encontro entre um homem santo da Índia e um escritor, baseando-se na experiência de um Maugham que, nos seus últimos anos, desenvolveu um interesse especial pela espiritualidade oriental, bem explícita
Maugham quis escrever um romance filosófico que desse conta não só da sua experiência desde a infância mas também do seu percurso como pensador.
Somerset Maugham começou a escrever Servidão Humana aos 37 anos como uma espécie de catarse para as suas múltiplas angústias e traumas. O romance, cujo título foi retirado da Ética de Espinosa, surgiu em 1915, depois de quatro anos de trabalho árduo. É uma típica história de aprendizagem iniciática e surgiu numa altura em que os Bildungsroman conheciam um enorme sucesso com autores como Samuel Butler, Arnold Bennett, H.G. Wells, D. H. Lawrence e James Joyce, de tal forma que os críticos de então afirmavam com ironia que não havia escritor que se prezasse que não começasse por contar a sua vida, mais ou menos disfarçada numa trama ficcional.
Maugham cria a personagem de Philip, relatando – com pormenores por vezes demasiado enfáticos – o seu longo caminho da realização pessoal, as tentativas para escapar a uma existência burguesa, acomodada e sem sentido e, mais tarde, a uma relação sórdida e condenada. Philip, à semelhança de Maugham, é um órfão entregue a guardiões mais velhos, estranhos e severos, num ambiente desconhecido e hostil. A primeira parte do livro é dedicada à vida em Blackstable – Maugham viveu em Whitestable – e na escola em Tercanbury – a de Maugham era a King's School em Canterbury – sendo descrito com minúcia o ambiente vitoriano e dickensiano da casa e da escola, com as habituais cenas de bullying – o ponto fraco de Philip é um pé boto, a de Maugham era a gaguez – a mediocridade da maior parte dos professores – ignorantes, preguiçosos, insensíveis, estúpidos –, o tédio da rotina escolar, o sentido de injustiça e a lenta descoberta da identidade.
"É sempre uma bênção quando encontro um leitor. Um leitor é um coprodutor de um livro. Eu escrevo a partitura e ele interpreta-a. Se estiver a ler acerca de um pôr-do-sol, o leitor traz para o livro todos os pores-do-sol que já viu. É por isso que não há dois leitores que tenham lido o mesmo livro. Podemos admirar quadros ou ouvir música enquanto falamos com um amigo, mas quando lemos, lemos sozinhos. Fazemos parte do processo."
Para ler a entrevista de Amos Oz, na sua casa, no Neguev, ao The Hindu, aqui.
É agora reeditada a grande obra-prima de Somerset Maugham, um dos livros que marcou definitivamente a literatura mundial do século XX. Para ler com calma
Somerset Maugham teve muitas vidas: para além de escritor, assistiu à terrível transição do século XIX para o XX, e participou na I Guerra Mundial, primeiro como médico e depois como agente. Foi, de resto, enviado para a Rússia, em 1917, para tentar conseguir que os bolcheviques se mantivessem na guerra. Sem sucesso, é claro. Mas por isso não surpreende que o principal personagem de Servidão Humana (aquela que é considerada a sua obra-prima), Philip Carey, rejeita a arte em favor da medicina. É como uma declaração moral sobre a sua própria vida. Ao longo do livro, seguimos a vida de Philip, desde que fica órfão do pai com nove anos e, apesar de herdar uma pequena fortuna, esta é gerida pelo seu tio até ter 21 anos. Nos livros, ele descobre a forma de se evadir do mundo que o cerca. Philip vive, às vezes, num mundo de ficção.
É um rapaz reservado, que vai perdendo a pouco e pouco a sua fé. Apesar do seu talento nos estudos ele deseja abandonar a escola e ir para a Alemanha. Ali conhece dois outros jovens, Hayward e Weeks, que acabam por ter uma forte importância na sua crença. De regresso a Inglaterra, após uma paixão com uma mulher mais velha que não o convence, começa a pensar em estudar arte
Mas esta longa viagem na vida de Philip acaba por ser, para Somerset Maugham, o retrato da vida de muitos de nós. Philip busca o seu espaço de liberdade mas ele é sempre coarctado pelos interesses e ambições dos outros e pelo mundo que não consegue dominar. No choque entre o desejo, a desilusão e a infatigável luta pela liberdade, o grande escritor constrói aqui uma personagem que acaba por sedimentar grande parte da escrita do século XX. Ninguém duvida que muitos dos grandes autores do último século foram beber a este livro o universo de sonho, descrença e melancolia com que polvilharam as suas páginas. A paixão suicida de Philip por Milred, que nunca termina. “Subitamente sentiu um espasmo percorrer-lhe o corpo; à sua frente ia uma mulher que julgou ser Milred. Tinha a mesma figura e caminhava com aquele leve arrastar dos pés que lhe era tão característico. Sem reflectir, mas com o coração acelerado estugou o passo até se colocar ao lado dela, mas quando a mulher se voltou viu que se tratava de uma desconhecida. (…) Não se libertaria nunca daquela paixão?” Os dilemas de Philip são os do comum mortal, presos entre várias escolhas que não controlam. “O seu percurso sempre fora desviado pelo que acreditava que devia fazer e nunca pelo que de todo o seu coração queria fazer. Pôs agora tudo isso de lado com um gesto de impaciência. Sempre vivera no futuro e o presente sempre lhe fugura por entre os dedos. (…) não vira ele também que o padrão mais simples, aquele em que um homem nascia, trabalhava, casava, tinha filhos e morria, era igualmente o mais perfeito?” Este é um livro crucial para compreender os dilemas dos seres humanos nesta sociedade. É uma verdadeira obra-prima.
Crítica de Fernando Sobral a Servidão Humana, de Somerset Maugham, publicada no Jornal de Negócios, no dia 4 de Dezembro.
William Somerset Maugham, um dos mais famosos romancistas e dramaturgos ingleses do século XX, faleceu faz hoje 44 anos. Nascido em Paris, em 1847, filho de diplomatas britânicos, cedo ficou órfão, tendo sido educado por um tio, vigário de Whitstable. Apesar de ter estudado Medicina na Alemanha e em Londres, nunca chegou a exercer, tendo sido, entre muitas outras actividades, condutor de ambulâncias durante a Primeira Guerra Mundial (à semelhança de escritores como Ernest Hemingway) e espião. As suas viagens um pouco por todo o mundo influenciaram profundamente a sua escrita. Em 1928 comprou uma propriedade na Riviera francesa, onde recebeu as mais importantes figuras do mundo literário, social e político da sua época, e que seria a sua casa até falecer.
Entre as suas obras mais conhecidas, contam-se Servidão Humana e O Fio da Navalha (a publicar na Vintage em 2010), considerada duas das obras mais importantes da literatura do século XX.
Brno nomeou como cidadão honorário o escritor francês de origem checa Milan Kundera, nascido em 1929 naquela localidade do Sudeste da República Checa. A cidade quis desta forma reconhecer a trajectória literária de um dos seus mais distinguidos intelectuais do século XX.
“Milan Kundera é um homem que admiro muito. Sei que já recusou por diversas vezes importantes distinções, até de família reais europeias. Porém, escreveu-nos uma carta em que confirma que, caso fosse distinguido, receberia o prémio”, afirmou à AFP o presidente da Câmara de Brno, Roman Onderka.
No entanto, devido ao seu estado de saúde, o escritor não poderá deslocar-se à República Checa para receber o galardão, sendo que o título lhe será entregue em mãos pelo presidente da Câmara de Brno em Paris, onde o escritor reside.
O título de cidadão honorífico é atribuído em cada quatro anos pela autarquia daquela cidade da região da Morávia.
Reedição de um clássico injustamente esquecido, baptizado com o nome de um dos livros da Ética de Espinoza, que atravessa os grandes temas da condição humana, do livre arbítrio e da relação com o divino. É também um retrato autobiográfico, um romance sobre as consequências das escolhas feitas, e uma anatomia do amor. Philip Carey, adoptado pelos tios, tímido rapazinho com um defeito no pé, vacila na sua crença em Deus e recusa ser pároco. Adulto, viajará por Londres e Paris, perseguindo o sonho de ser escritor, depois pintor, e, por fim, homem amado. A paixão por Milred, criada andrógina e manipuladora, leva-o à ruína, A superação dessa servidão será uma caminhada épica.
Crítica de Sílvia Souto Cunha a Servidão Humana, de Somerset Maugham, publicada no especial livros de Natal, na quinta-feira, na Visão.
Servidão Humana, de Somerset Maugham, é o novo título da colecção “Vintage” da ASA, cujo objectivo é reunir algumas das obras-primas da literatura universal. E esta será seguramente uma delas. Romance de formação, conta a história de Philip Carey, alter ego do autor na sua juventude. Com o objectivo de conquistar a sua independência e descobrir o mundo, muda-se para Paris. Cidade onde a sua vida mudará para sempre, sobretudo depois de conhecer a mulher por quem se apaixona perdidamente.
Crítica do Jornal de Letras a Servidão Humana, de Somerset Maugham, publicada na quinta-feira.
o livro do riso e do esquecimento