O romance O Amante é assumidamente autobiográfico. A protagonista, uma adolescente francesa filha da diretora de uma escola, conhece um empresário chinês numa barcaça que atravessa o rio Mékong. Estamos na Indochina, no final dos anos vinte do século XX, ainda antes daquela colónia francesa se tornar no atual Vietname.
Tal como na memória não há nada de linear neste livro que é um dos marcos da literatura francesa da segunda metade do século passado. A escrita de Marguerite Duras é de uma exatidão extrema. O resultado final, na acumulação de imagens e momentos, tem o mesmo carácter difuso que constitui a matéria das nossas recordações mais fundas.
A rapariga de quinze anos e meio terá o seu primeiro amante mas, mais do que essa história, de uma iniciação amorosa, esta é a história de como os sentimentos se misturam, estão longe - como tudo o que vivemos – de ser puros e lineares: «por vezes sei isto: que a partir do momento em que escrever não é todas as coisas confundidas, ir à vacuidade e ao vento, escrever não é nada».
Para ouvir aqui.
Recentemente, a jornalista Teresa Sampaio do programa Ler+ convidou-me a falar sobre um dos meus livros preferidos. A lista é grande, como a de todos os leitores deste blogue, tenho a certeza; mas, certamente porque saberia das minhas hesitações, a jornalista sugeriu que eu falasse de um romance que fora objecto de um post bem elogioso aqui no blogue, provavelmente porque também ela o achava merecedor de divulgação e leitura. Falo de O Amante, de Marguerite Duras, vencedor do prémio Goncourt em 1984, sobre um episódio assumidamente biográfico, a relação que a escritora manteve, aos quinze anos e meio, com um chinês milionário de vinte e sete na exótica Indochina onde então vivia. Aceitei o desafio, mas, como já não lia o romance havia anos, disse cá para mim que o melhor era relê-lo, sentir-lhe de novo o cheiro e ter tudo mais fresco. Tratando-se, porém, de um desses romances que cremos terem mudado a nossa vida, estava aterrada com o que poderia vir a achar tantos anos depois. Já me acontecera regressar a um livro que tinha amado e não conseguir sequer perceber o que me atraíra nele da primeira vez e, quanto a este, não queria que se quebrasse o encanto. Porém, assim que abri a velhinha edição e li aquela frase «Muito cedo na minha vida foi tarde demais», percebi que o feitiço era para sempre e que não corria, afinal, qualquer risco. Reli-o num virote e fiquei outra vez com pena quando acabou. Tenho a certeza de que todos temos paixões assim.
Retirado do blogue Horas Extraordiárias, de Maria do Rosário Pedreira.
o livro do riso e do esquecimento